quarta-feira, 21 de abril de 2010

Os súditos da rainha


“Nós descendemos da Marinha Britânica. Conhece a história da Volta de Nelson?”. Esse nós eram eles, os oficiais da Armada. Eu sabia da história do almirante inglês, embora não me interessasse por ela. Queria apenas cumprir o meu tempo de serviço e mandar todo mundo tomar naquele lugar, coisa que já fizera antes, mas não era um bom negócio, pois conhecia a cela onde ficara Tiradentes, numa rocha na Ilha das Cobras.
O babaca que me falava essas coisas era o oficial do dia. Entornara algumas doses de Cavalo Branco legítimo, contrabandeado pelo Navio Escola Brasil. Lógico, pois que cota era essa que abastecia quase todos os oficiais generais da briosa e ainda sobrava para um batateiro velho como o Ary? Só mesmo na ilegalidade, no contrabando oficial. E ainda vem o cretino dizer-me que é súdito da rainha da Inglaterra.
Quem eu era? Eu era o master-cook. Sim, que mais eu poderia ser? Entrei no jogo da autoridade. Não tem o velho ditado, una-se aos seus inimigos? Aliás, o oficial nem era meu inimigo, só estava enchendo a minha paciência, depois de eu ter, sozinho, preparado comida para mais de cem homens, entre o pessoal de serviço e os nordestinos e sulistas que moravam a bordo, pois o salário era tão merda quanto o ambiente. Já falei, estava somente aguardando o final do meu contrato para mandar... isso.
Bom. Se eu era um chef inglês ante um discípulo de Nelson, nada mais lógico que preparasse um prato á altura do oficial e convidados. Sim, nos finais de semana eles levavam convidados para o navio, gostaria de vê-los levar para uma churrascaria na Barra e pagar do próprio bolso, mas isso eles não fazem.
“Capitão,vou preparar um prato inesquecível para o senhor e convidados, um prato digno de um oficial da corte, disse-lhe, sério, para não parecer ironia.”
“Desde quando você sabe fazer outra coisa a não ser fritar batatas e ovos?”
Fingi não ouvir a ofensa ao bom profissional que eu fora.
“Que tal, capitão, comer um legítimo Sunday roast? Pode convidar inclusive o oficial superior da Força. Aliás, capitão, eu já cozinhei para o ministro da Marinha, pode olhar a minha caderneta.”
Cozinhara mesmo, até o dia em que a mulher do ministro achou que eu poderia cozinhar para eles em Petropólis. Eu perguntei se o mar havia subido a serra. Por isso estou nesse navio velho.
Comprovada a minha passagem por Brasília, desfiei para o capitão o que seria o prato, mas antes o adverti que precisaria abrir a frigorífica para pegar peru, carneiro, presunto assado e ingredientes para preparar os molhos gravy, cranberry, as verduras especiais, maçãs para acompanhar o gammon, material para preparar o molho de menta que acompanha o carneiro, e também para preparar o molho de raiz forte para acompanhar as verduras.
“Sem problemas”, foi o que ouvi.
O Sunday roast, não estava acreditando que ia comer novamente um Sunday roast, e ainda queria sair da Marinha, só mesmo eu.
Vou economizar ao caro leitor o tempo que levei preparando a iguaria, que modéstia à parte estava digna de qualquer rei ou rainha. Almoçaram cerca de doze pessoas, entre familiares, amigos do capitão e o oficial superior da força, que estava na relação dos novos almirantes a serem promovidos na semana seguinte, bem mais antigo que o comandante do navio.
Os elogios vieram a mim pelo automático e junto a eles um convite do novo almirante, para ser o seu cozinheiro, o que foi prontamente aceito. Bom, vocês já sabem que um navio velho como o Ary, apelidado de batateiro, não teria todos aqueles ingredientes em sua frigorífica a não ser por um motivo especial. Por obra do acaso, eu ouvira o imediato e o comandante acertando os detalhes do jantar de troca de comando da força, que seria no nosso velho e querido Ary Parreiras. Para todos os efeitos, eu não sabia a finalidade daqueles mantimentos. Bom, o capitão não chegou a conhecer a prisão onde ficara Tiradentes, mas foi transferido para Ladário, Mato Grosso do Sul, com dez dias de prisão para serem cumpridos lá. Deve ser assim na Gã-Bretanha. Sorry.

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